sexta-feira, 13 de maio de 2016

"Senado Federal: Penúltimo Ato", por José Serra


O Estado de S. Paulo, 12 de maio de 2016
No inferno, os lugares mais escuros estão reservados aos que, em momentos de grande crise moral, mantiveram-se neutros. (John Kennedy, lembrando Dante)
Se tudo caminhar como o previsto, o Senado já terá acolhido, até esta quinta-feira, o juízo de admissibilidade do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. A partir daí, ela permanecerá afastada do cargo até os senadores decidirem, em até seis meses, sobre o impeachment propriamente dito. Creio que a Casa decidirá pelo afastamento definitivo de Dilma bem antes desse prazo.
Sou a favor da admissibilidade e do impedimento. Sem alegria, mas para cumprir um dever. Ao fim e ao cabo, o impeachment é um processo arrastado, penoso, que provoca constrangimentos pessoais, produz alianças estranhas e representa uma quase tragédia para o país. Deveríamos procurar evitá-lo – se pudéssemos e se fossem outras as circunstâncias. Mas ele agora se impõe como um remédio amargo, porém essencial. A continuidade do governo Dilma seria uma tragédia maior. Este é o ponto a que chegamos.
O derretimento da produção, do emprego e das condições sociais, a exacerbação dos conflitos políticos e do risco de colapso do Estado de Direito, além dos indícios de crimes de responsabilidade, não deixaram outra saída senão o afastamento da presidente pelo caminho preconizado na Constituição.
Que fique claro: crime de responsabilidade tem natureza político-administrativa e é julgado pelo Senado. Não é o mesmo que crime comum, que tem natureza penal e é julgado pelo Poder Judiciário.
De fato, o governo não atendeu à exigência de autorização legislativa prévia para gastos públicos e recorreu a operações de crédito dissimuladas junto a instituições controladas pela União. Daí a rejeição das contas de 2014 pelo TCU, que se estendeu ao exercício de 2015. São indícios suficientes para abrir a segunda fase do processo.
Os defensores de Dilma martelam o refrão do “golpe”, como se sua retórica pudesse se sobrepor à Carta de 1988. O impeachment não é uma medida de exceção, mas uma solução constitucional. E é evidente que envolve também um processo político, e não se esgota na dimensão jurídica formal, tanto que o “tribunal” é formado por parlamentares com mandato eletivo. Isso não equivale a menosprezar as provas dos crimes de responsabilidade, cujo mérito será considerado nos próximos meses pelo Senado. Mas é preciso levar em conta também os fatores políticos que condicionam os parlamentares.
O mais essencial deles é a rejeição avassaladora ao governo Dilma, medida pelas pesquisas e escancarada pelas manifestações de protesto que ganharam as ruas numa escala inusitada no Brasil. Tal rejeição é constatada pelos parlamentares quando retornam a seus estados. Os que são opositores voltam mais radicais; os governistas se tornam menos governistas, pois temem por suas chances de reeleição, preocupação obsessiva de cada deputado desde seu primeiro dia de mandato.
A rejeição vem, de um lado, do agravamento da crise econômica. De outro, das revelações da operação Lava Jato. Tudo num contexto de inépcia administrativa, isolamento político autoinflingido e debilidade na comunicação, marcas do governo Dilma Rousseff.

Como subestimar a responsabilidade da presidente pelas causas da erosão de sua popularidade? O quadro atual, de mergulho do PIB, explosão do desemprego, fechamento de empresas e expansão alucinada da dívida pública, não é um efeito retardado da crise mundial de 2008/2009 nem pode ser imputado à oposição. É fruto das profundas distorções econômicas que Dilma herdou de seu antecessor, de quem foi chefe da Casa Civil, e que agravou mediante uma série de equívocos de sua lavra: emperramento das parcerias com a área privada na infraestrutura; isenções tributárias caras e ineficientes que agravaram a crise fiscal; repressão insustentável e eleitoreira dos preços dos derivados de petróleo e da energia elétrica, prosseguimento das loucuras cometidas na gestão da Petrobrás. Pesou, ainda, o estelionato na reeleição da presidente, cuja campanha acusava seu adversário de pretender implantar medidas econômicas “perversas” que ela própria tratou de emplacar em seguida.
Quanto à corrupção, os escândalos do passado empalidecem diante do esquema do “mensalão” e do “petrolão”, como apontou o Procurador Geral da República. Seu núcleo político se confunde, desgraçadamente, com a cúpula do partido que Dilma representa na chefia do governo. Mesmo que a presidente não tenha se locupletado, isso não a exime da responsabilidade política pelo ocorrido.
Depois das eleições de 2014, em entrevistas e pronunciamentos, reiterei sempre minha convicção de que a presidente Dilma não chegaria ao final do seu mandato. Não sabia como, mas sentia que o aprofundamento da crise econômica, a rejeição popular crescente, a perda de sustentação política, o descrédito geral, a Lava-Jato e o desnorteamento das ações governamentais abreviariam o segundo mandato. Houve quem, como Fernando H. Cardoso, sabiamente sugerisse a renúncia da presidente e a organização de uma transição negociada e mais suave para um novo governo, proposta desprezada por quem deveria praticá-la.
Incompetência, impopularidade e perda do controle da administração pública não são motivos suficientes para afastar um presidente, como, aliás, Dilma e seus defensores têm melancolicamente repisado. Mas a perda de legitimidade política decorrente desses fatores e da deterioração do principal partido do governo, outrora arauto da moralidade e da ética na política, ao lado das transgressões fiscais comprovadas, não deixam outra saída.
O impeachment não representa o fim dos problemas do país, mas tornou-se condição necessária para começarmos a lidar com eles. Vamos enfrentar o árduo desafio da reconstrução nacional, passando por uma profunda reforma política. Isso depende de esforços convergentes das grandes instituições – Executivo, Legislativo e Judiciário. Mão à obra!

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